Vistas da bienal na Galeria Quadrum/Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC.
Portuguese Version
Nota prévia: o texto a seguir se restringe à crítica da exposição The Listening
Biennial, patente na Galeria Quadrum, a qual integra a vasta programação do projeto
homônimo. O mesmo envolve uma série de performances, exposições e eventos discursivos
que decorrem em Lisboa e em vários países para além de Portugal.
I
Dentre os batentes de alumínio das janelas,
raios solares se dissipam pela sala, consumindo a superfície muito branca das paredes e
colunas com sua presença luminosa. Refletem no chão de pedra clara, uniformizando
a iluminação do espaço povoado pela ausência do visível. No centro, repousam apenas dois
relevos que parecem nascer do piso: dois bancos que convidam o público a demorar-se. Do
privilégio de estar situada em um dos edifícios
mais bem-aventurados na relação entre exterior e interior, em Lisboa, vem a ideia de que a
galeria Quadrum foi uma feliz escolha para receber uma exposição em que não há nenhuma
presença visual. Em The Listening Biennial,
o próprio prédio da galeria se transmuta em escultura e acolhe, em seu interior, obras que
são inteiramente sonoras. Neste lugar limítrofe entre o seu interior e os jardins que a
circunscrevem, os batentes de alumínio parecem
desaparecer, deixando o vívido verde e o jogo de luz e sombra que o correr do dia oferece
adentrarem o espaço expositivo.
É nesse cenário, privilegiado pela própria
arquitetura da galeria Quadrum, que habita uma sinuosa
paisagem sonora criada a partir de trechos, de até quinze minutos, de todos os trabalhos que
integram a segunda edição da bienal. Assente na ideia da escuta enquanto origem de práticas
criativas e metodologia de pesquisa e
trabalho, The Listening Biennial é um projeto transcontinental e contínuo, do
diretor artístico Brandon Labelle, no qual artistas e curadores são convidados a criar uma
programação que atravessa territórios geográficos
e disciplinares. Nesta edição, Luísa Santos, Guely Morato, Dayang Yraola e Rayya Badran são
as curadoras convidadas a pensar a mostra que acontece simultaneamente em diversos países e
instituições e traz um conjunto de trabalhos
em áudio, performances experimentais e conversas. Através da ideia de “partilha,
reciprocidade, troca e mutualidade”[1], reafirmam o interesse e a necessidade em
pensar as ecologias da atenção no contexto contemporâneo.
A exposição homônima do projeto, patente até o próximo dia 8, encontra nesses ideais uma
maneira de convidar o público à pausa e à permanência.
Na ampla e desabitada sala
expositiva, se escondem, junto ao topo dos pilares
de sustentação do edifício, quatro pequenas caixas sonoras. Das mesmas, ecoam os trabalhos
em um fluxo quase ininterrupto — os únicos breves silêncios são logo preenchidos pelas vozes
dos artistas a apresentarem a si mesmos
e às obras. O espaço sensível da exposição se circunscreve na relação de captura que o som
produz em relação aos visitantes — em uma experiência intensamente sensorial e reflexiva.
Por vezes, o público se torna testemunha dos
sussurros inaudíveis dos seres microscópicos que comunicam uns aos outros, em uma conversa
cuja linguagem só se pode alcançar pela imaginação e pela especulação[2]. Em
outras alturas, um vórtice de traumas da infância
se projeta em sons estridentes, entrecortados pelo barulho de antigas portas de madeira
rangendo, em uma montagem capaz de amplificar e quase materializar o imaginário sonoro dos
filmes de terror[3]. A seguir, um
antídoto a esse estado de medo se apresenta na forma de uma voz calma que, imersa em uma
intrincada paisagem sonora, narra uma saga à procura das ideias individuais que ressoam nos
outros e ecoam de volta, originando uma ideia
de voz coletiva[4]. Ao longe, um novo momento surge na escuta de uma lavoura
histórica que ambienta uma comunicação inter-espécie, que une os animais aos homens — os
quais, pela yunta[5], constróem a sua
linguagem comum[6].
II
Na confluência de trabalhos sonoros tão
heterogêneos, a ideia de linearidade se faz abstrata. Ao habitarem territórios distantes,
eles criam a possibilidade para relações radicalmente opostas serem estabelecidas
com o público. Como uma trilha sonora a ressoar no fundo do pensamento, o olhar pode se
perder pela janela afora: no jardim, duas crianças jogam com uma bola vermelha, atravessando
as sombras formadas pela incidência solar
nos troncos e nas folhas das árvores. Em um instante, a cena se fixa na retina. Tal imagem
se prolonga na memória, fazendo o jogo pueril se reproduzir visualmente pelo tempo que durar
a paisagem sonora que ecoa na galeria —
ainda que lá fora já não haja mais crianças a jogar. Mecânica e involuntariamente, os
ouvidos captam o som, ainda que ele se dilua e se transforme nesse ruído quase silencioso e
apenas discretamente presente nas paredes do
pensamento.
Algo de misterioso acontece na distância entre ouvir e escutar. O primeiro se refere
a um processo fisiológico e involuntário — as ondas sonoras viajam pelo espaço até os
pequeninos ossos dos ouvidos que as recebem,
traduzem e amplificam as informações que, então, são processadas pelo cérebro. O segundo,
por sua vez, se refere a uma capacidade relacional e voluntária[7]. Ambos não são
processos análogos, da mesma maneira que
o olhar e o ver não o são. Escutar implica prestar atenção[8]. E, por essa
perspectiva, a escuta se transforma em uma categoria intrinsecamente filosófica,
potencialmente política e veemente anti-mecanicista.
Ao escrever a partir de sua própria experiência em um workshop de Deep
Listening[9], a artista e pesquisadora Emily Pothast faz uma curiosa descrição
sobre o processo de escuta que contrapõe as respostas
psicossociais de quando se ouve algo que soa familiar à de ouvir o desconhecido. Segundo
ela, o familiar reflete na identificação daquilo que se ouve com os sentimentos resguardados
pela memória, enquanto o desconhecido é propício
a gerar uma possível rejeição ou desagrado. Por sua vez, um “ouvido treinado” sabe
confrontar esse instinto de rejeição ao desconhecido ou a tentativa de projetar nele uma
busca por fragmentos cognoscíveis, e reconhece esse
encontro como uma possibilidade de aprendizagem. A segunda relação que se pode criar entre o
público e os trabalhos da exposição, diametralmente oposta à primeira, parte do mesmo
princípio de que fala Pothast. É preciso, para
além de tal “ouvido treinado”, reconhecer no embate com o não-familiar uma oportunidade para
aprender novas maneiras de comunicação com os sons ao redor.
Tal exercício se situa à
margem da lógica de consumo rápido e
imediato que é sintomática não apenas da sociedade contemporânea, mas também da forma que
muitas instituições culturais e museológicas tendem a funcionar. Talvez por isso, pedir ao
público que abdique do hábito de exaurir rapidamente
as possibilidades de leitura e experiência artísticas seja a mais árdua proposta de
Listening Biennial — o que incita a ideia de que talvez a mostra precise explorar
ainda mais os seus formatos expositivos a fim de
melhor aceder ao público. Mas, apesar dessa ressalva, interessa aqui apontar para uma das
infinitas possibilidades que se cria justamente quando a segunda relação é a que se
estabelece.
Vistas da bienal na Galeria Quadrum/Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC.
III
A História contada através de uma perspectiva
unilateral é, talvez, uma das piores heranças coloniais. Uma possível maneira de romper com
essa tradição, como aponta a artista e pesquisadora Daniela Medina Poch
em seu texto que integra a primeira publicação impressa da bienal, intitulado The Land of
Thunder and Lightning[10], pode ser através da escuta — enquanto lugar de
atenção, generosidade e cuidado. A escuta enquanto
espaço para múltiplas vozes — que, ao ganharem espaço para serem ouvidas, desmontam as
narrativas unilaterais. O pensamento que Poch desenvolve em seu texto explica o potencial
profundamente político contido no ato de, solidariamente,
escutar.
Quando um zumbido contínuo e grave que, aos poucos, inunda a cabeça e anuvia os
pensamentos é ouvido, e, distante, o barulho incômodo das usinas eólicas construídas no
Istmo de Tehuantepec (Oaxaca, México) causa uma
invasão sonora nas vidas dos habitantes das redondezas, narrativa sonora e testemunho se
tornam uma mesma coisa. Viento Sagrado, de Griselda Sánchez, é capaz de, nessa
união, trazer para primeiro plano aquilo que verdadeiramente
deve ser ouvido: as vozes das pessoas que são afetadas pelos empreendimentos do
pseudo-progresso. Em 10,000 Simple Steps to Perfectly Draw an Arabian Horse, de
Hasan Hujairi, um audio manual de como desenhar
perfeitamente um cavalo árabe, explicado por uma criança, é interrompido por cítaras e
ruídos agudos. Caso contrário, a explicação levaria à perfeita execução do desenho? Se não é
possível ouví-la, há que existir outra maneira
de ensinar a lição. Entretanto, devem as disciplinas das instituições de ensino artístico
ser seguidas cegamente? Estão elas adequadas à realidade prática de seus contextos? É a
escuta o campo de batalha a ser conquistado para
fazer surgir novas pedagogias?
Destacar esses dois exemplos, notavelmente díspares, é
uma forma de ilustrar aquilo que talvez seja o mais frutuoso contributo da exposição:
estabelecer a escuta enquanto força motriz para
necessárias mudanças em relação à postura adotada na percepção e, consequentemente, na ação
de cada indivíduo sobre aquilo que o cerca. Entendê-la enquanto espaço de acolhimento e
reconhecimento de vozes, humanas e não-humanas,
que têm sido costumeiramente silenciadas. É por acreditar nessa potência contida no ato de
escutar que The Listening Biennial coleta, em vários recantos pelo mundo, histórias
de artistas que trabalham dedicadamente
à procura de tais vozes.
[1] “Pensada como um projeto coletivo e colaborativo que assenta na partilha, na
reciprocidade, na troca e na mutualidade, a segunda edição da Bienal contempla a exposição de 27
trabalhos artísticos em áudio – peças integralmente
sonoras, sem qualquer presença visual ou física -, performances experimentais e eventos
discursivos apresentados numa constelação de instituições em vários países em simultâneo, onde a
escuta e a localidade são acentuadas, e as
especificidades culturais contribuem para uma maior ecologia da atenção.” Folha de sala
exposição The Listening Biennial.
[2] Referência ao trabalho The
Great Succession, pela dupla Landra (Sara Rodrigues
e Rodrigo Camacho).
[3] Referência ao trabalho Scoring Fear, por Aia
Atoui.
[4] Referência ao trabalho NEVER BE NO VOICE, por
Mamoru.
[5] “Yunta" se refere a uma junta ou par de animais de carga
ou tração, geralmente bois ou cavalos, que trabalham em conjunto puxando arados ou outros
equipamentos agrícolas. Esses animais são treinados para trabalhar em sincronia, formando
uma equipe para auxiliar nas atividades agrícolas.
[6] Referência ao trabalho
Rimarispa Wakaswan, por Lucia Herbas Cordero.
[7] Pioneira nos
estudos sobre a escuta atenta, Pauline Oliveros
desenvolveu metodologias de ensino e workshops de Deep Listening ao longo de
sua pesquisa. Nos mesmos, é explorada a diferença entre a natureza involuntária de ouvir e a
natureza voluntária e seletiva de escutar.
[8] Destaco aqui a utilização do
verbo “prestar”, como o equivalente ao “pay” em inglês, e as limitações linguísticas
que podem surgir ao repensar os termos. Como sugere o texto original da segunda edição da
The Listening Biennial,
na língua inglesa, faz sentido substituir o “pay” pelo “give” (dar) quando se
fala sobre a escuta atenta.
[9] Constructive Notice, Emily Pothast.
Disponível em: The Wire, edição Agosto
de 2018.
[10] Em The Land of Thunder and Lightning, Daniela Medina
Poch, poética e também didaticamente, explora a relação entre a potência política da escuta e a
exploração neoliberal dos recursos naturais
levada a cabo pelos países considerados desenvolvidos (lê-se: o norte global) em detrimento das
condições de vida e manutenção da tradição, do direito à terra e dos ecossistemas do sul global.
Views of the biennial at Galeria Quadrum/Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC.
English Version
Between the aluminum door frames of the windows, sunbeams disperse through the room,
consuming the very white surfaces of the walls and columns with their luminous presence.
They reflect on the light stone floor, unifying the illumination
of a space populated by the absence of the visible. In its center, there are only two
reliefs that seem to emerge from the floor: two benches that invite the audience to linger.
From the privilege of being situated in one of
the most blessed buildings in the relationship between exterior and interior in Lisbon,
comes the idea that the Quadrum gallery was a fortunate choice to host an exhibition in
which there is no visual presence. In The Listening
Biennial, the gallery building itself is transformed into a sculpture and houses entirely
sound-based artworks on its inside. In this liminal space between its interior and the
surrounding gardens, the aluminum door frames
seem to disappear, allowing the vivid green and the interplay of light and shadow offered by
the passage of the day to enter the exhibition space.
It's in this setting, favored
by the gallery's own architecture, that
a sinuous soundscape resides, created from segments, up to fifteen minutes in length, of all
the works that make up the second edition of the biennial. Rooted in the idea of listening
as the origin of creative practices and
a methodology for research and work, The Listening Biennial is a transcontinental and
ongoing project by artistic director Brandon Labelle, in which artists and curators are
invited to create a program that spans geographic
and disciplinary territories. In this edition, curators Luísa Santos, Guely Morato, Dayang
Yraola, and Rayya Badran are invited to think about the exhibition that takes place
simultaneously in various countries and institutions,
bringing a set of audio works, experimental performances, and conversations. Through the
idea of "sharing, reciprocity, exchange, and mutuality”, they reaffirm the interest and the
need to think about the ecologies of attention
in the contemporary context. The eponymous exhibition of the project, open until August 8,
finds in these ideals a way to invite the public to pause and stay.
In the spacious
and unpopulated exhibition room, four small
sound boxes are hidden, along the top of the building's support pillars. From these boxes,
the works echo in an almost uninterrupted flow — the only brief silences are quickly filled
by the voices of the artists introducing
themselves and their works. The sensitive space of the exhibition is defined by the capture
relationship that sound creates with the visitors — an intensely sensory and reflective
experience. At times, the public becomes a
witness to the inaudible whispers of microscopic beings communicating with each other, in a
conversation whose language can only be reached through imagination and speculation. At
other times, a vortex of childhood traumas
projects itself into shrill sounds, interspersed with the creaking of old wooden doors, in
an assembly capable of amplifying and almost materializing the sonic imagery of horror
films. Next, an antidote to this state of fear
presents itself in the form of a calm voice that, immersed in a complex soundscape, narrates
a saga in search of individual ideas that resonate with others and echo back, forming an
idea of collective voice. In the distance,
a new moment arises in listening to a historical farming scenario that sets the stage for
interspecies communication, uniting animals and humans who, through the yoke, construct
their common language.
In the convergence
of such diverse sound works, the idea of linearity becomes abstract. By inhabiting distant
territories, they create the possibility for radically different relationships to be
established with the public. Like a soundtrack
resonating in the background of the mind, one can gaze trough the window: in the garden, two
children play with a red ball, crossing the shadows formed by the sunlight on the trunks and
leaves of the trees. In an instant, the
scene is imprinted on the retina. This image lingers in memory, allowing the childish game
to be visually reproduced for as long as the sound landscape echoes in the gallery — even if
there are no more children playing outside.
Mechanically and involuntarily, the ears capture the sound, even as it fades and transforms
into that almost silent and discreetly present noise on the walls of
thought.
Something mysterious happens in the space between
hearing and listening. The former refers to a physiological and involuntary process — sound
waves travel through space to the tiny bones in the ears that receive, translate, and
amplify the information, which is then processed
by the brain. The latter, on the other hand, refers to a relational and voluntary capacity.
Both are not analogous processes, just as looking and seeing are not the same. Listening
involves paying attention. From this perspective,
listening becomes an inherently philosophical category, potentially political, and
vehemently anti-mechanistic.
When writing from her own experience in a Deep Listening
workshop, artist and researcher Emily Pothast provides
an interesting description of the listening process, contrasting the psychosocial responses
when hearing something familiar with hearing the unfamiliar. According to her, the familiar
reflects the identification of what is
heard with the feelings preserved in memory, while the unfamiliar is likely to generate
possible rejection or displeasure. A "trained ear" can confront the instinct to reject the
unfamiliar or the attempt to project a search
for familiar fragments onto it, recognizing this encounter as a learning opportunity. The
second relationship that can be established between the public and the exhibition’s works,
diametrically opposed to the first, is based
on the same principle as described by Pothast. Beyond such a "trained ear”, it is necessary
to recognize in the encounter with the unfamiliar an opportunity to learn new ways of
relating to the surrounding sounds.
This
exercise stands at the margin of the logic of quick and immediate consumption that is
symptomatic not only of contemporary society but also of how many cultural and museum
institutions tend to operate. Perhaps that's why asking
the public to abandon the habit of quickly exhausting the possibilities of artistic reading
and experience is the most challenging proposition of The Listening Biennial — which
suggests that the exhibition may need to further
explore its exhibition formats to better engage the public. However, despite this
reservation, it is interesting to point out one of the countless possibilities that arise
precisely when the second relationship is established.
Views of the biennale in Brotéria. Views of the biennale at the Antecamara Gallery.